A hora e a vez de Dalva de Oliveira





Se eu me casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz.
(Álvaro de campos – A Tabacaria)

por Amanda Reis


     Orquídea Preciosa, personagem da lenda chinesa “O lótus de cristal”, apaixonou-se pelo canto do pescador Lu San, que todos os dias, perto de sua casa, trabalhava sem demais ambições. O sumiço repentino do pescador, de quem ela sequer conhecia o rosto, fez com que a moça adoecesse. Para a recuperação da menina, Lu San foi chamado, mas sua aparência rude foi suficiente para que fosse rejeitado. “Vistos de perto os homens e as coisas geralmente perdem seu halo de encanto” é o que diz a lenda chinesa.
     Com Dalva e Erivelto a história não foi bem outra, senão a mesma.  Vistos de perto, bem perto, o encanto se desfaz e problema é um e o mesmo: o pecado de Dalva foi amar demais. Isso é o que ela disse um pouco antes da morte (ela, Adriana Esteves, diga-se de passagem, porque afinal de contas estamos falando de uma história de amor entre dois personagens). O problema de nossa Dalva, portanto, foi amar demais aos filhos, ao marido, aos amigos, à família, e de menos a si mesma.
     Se um amigo puxa outro, também lembro aqui um grande amigo, Alan Miranda, que repete, ainda quando não diz verbalmente, que para amar é  preciso estar encantado. Não encantado como os apaixonados, mas encantado no que o termo possa ter de mais espiritual e transcendente. Cuidar de seu próprio encantamento deveria ser, portanto, o primeiro passo para as histórias de amor.
     Dalva pecou por aquilo que chamou de amor, tão considerado irmão do sofrimento. Dalva pecou por suas prioridades. Dalva pecou pela obstinação, pela persistência por um outro que não ela mesma.
     Como no famoso conto de Guimarães Rosa, “A hora e a vez de Augusto Matraga”, redenção e morte caminham juntas para quem não soube compreender em vida a importância de seu próprio encantamento, e por isso se cansou mais que os demais e passou para frente a irmandade entre afeto e dor.
     A redenção de Dalva, também como a de Matraga, acontece pouco antes da morte dela, no momento em que Erivelto aparece (numa cena muito bonita, que sugere um encontro espiritual) e ambos pedem desculpas um ao outro. A cena não é de dois corpos que se encontram, mas sim de duas sensibilidades que, diante da reflexão final que encerra a vida, souberam ter humildade – não  no sentido de se subjugar a um outro, mas a humildade de saber dentro de cada situação qual é o seu lugar. Saber o seu lugar e  saber quem você é diante de um outro são consciências necessárias para encantar-se.
     Portanto, meu amigo, resguardados o vigor e o rigor daquela juventude, a fala ainda é a mesma. Continuamos a procurar em horário comercial por algo que se convém chamar de amor.
     E como já foi clamado também em texto “Por um Eduardo sem Mônica”, eu clamo aqui por uma Dalva sem Erivelto para que se possa construir uma verdadeira história de amor, de um amor verdadeiramente encantado.
     Quanto a Lu San, nosso pescador rejeitado, desapareceu durante uma noite de frio e vento. Em seu barco foi encontrado um cristal (que, de acordo com a própria lenda, “é símbolo de um destino inacabado que se cristalizou pela necessidade da espera”) que foi esculpido e transformado num copo. Ao encher o copo, Orquídea Preciosa pôde reconhecer ao fundo dele, a imagem do pescador, que lamentava as limitações da amada. Ao reconhecê-lo e, após ouvir suas palavras, a moça chorou e suas lágrimas se fundiram ao cristal, que desapareceu. Era necessário, para a realização do amor, a consciência de Orquídea sobre si mesma, suas posturas, suas prioridades e isso  “foi o milagre. O doce milagre que só acontece na vida e no coração dos que sabem esperar. Porque o amor é como a morte: não se procura, espera-se.” 

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Como sempre, todo texto da minha querida amiga Amanda Reis é uma excelência. A resposta, em muito, superou o texto originário.